segunda-feira, 25 de outubro de 2010

PROMOÇÃO DE INDEFERIMENTO DE INSTAURAÇÃO DE INQUÉRITO CIVIL - REP 001204.2010.04.000/0

PROMOÇÃO DE ARQUIVAMENTO -

INDEFERIMENTO

DE INSTAURAÇÃO DE INQUÉRITO CIVIL



Trata o presente de expediente instaurado por força da denúncia formulada pelo Sindicato dos Professores do Estado do Rio Grande do Sul – SINPRO/RS que, em resumo, imputa à denunciada a prática de “despedir um número significativo de professores no início de cada semestre letivo inviabilizando completamente sua recolocação no mercado de trabalho”. Segundo o sindicato denunciante, o despedimento dos professores pela denunciada “representa violação de direito a ser reparado pelo empregador”, pois “cria um problema social grave, porque sendo ela a principal empregadora do setor educacional privado conhece a situação do mercado” e “rebaixa a situação do professor a tão-somente uma peça que pode ser descartada, não levando em consideração que a realidade, tanto da profissão, quanto do mercado, exigem certos cuidados na observância do contrato de trabalho”. Afirma ainda que a conduta da denunciada causa dano moral coletivo e requer “seja promovido Inquérito Civil, com posterior ajuizamento de ação civil pública” (folhas 03/06).

Determinei a intimação da empresa denunciada para se pronunciar, tendo ela, inicialmente, manifestado estranheza com a denúncia na medida em que o sindicato denunciante inclusive firmou com ela acordo coletivo envolvendo o pagamento das verbas devidas por ocasião da rescisão aos inúmeros professores despedidos em março do corrente ano. Alega que tal despedida decorreu de ajuste à Lei de Diretrizes e Bases, em atenção à notificação do MEC. Em relação aos despedidos em agosto, também do ano em curso, afirma que o desligamento decorreu da redução do número de alunos, que imagina vinculada à grave cris que assola a entidade, e que teria afetado a sua imagem. Sustenta, ainda, que os professores não são admitidos em regime de dedicação exclusiva e, por isso, podem trabalhar em outras instituições, o que muitos fazem. Aduz que que inexistem regras que regulamentem a data de rescisão de contrato de trabalho de professores e que, por isso, as instituições de ensino possuem livre arbítrio de contratar e despedir na época que lhes for mais conveniente. Diz também que a despedida não tem qualquer intuito de prejudicar os professores. Junta cópia do acordo coletivo de trabalho firmado com a entidade sindical denunciante.

Acolho o raciocínio exposta pela denunciada.

Em nosso sistema de direito do trabalho, a ruptura contratual, por iniciativa de qualquer das partes, é em regra livre. A qualquer tempo o empregado ou o empregador podem avisar a outra parte de que não há interesse na continuidade da relação e assim desvincular-se das obrigações do contrato de trabalho. Como os contratos de trabalho ordinariamente não têm prazo determinado, este aviso, chamado na lei de aviso prévio, faz com que o contrato passe a ter data para terminar, a qual corresponderá, como regra geral, ao término do período de 30 dias contado de tal aviso. O empregador somente não pode despedir empregados que detenham alguma forma de estabilidade ou garantia de emprego, ou aqueles que estejam afastados de suas atividades, com o contrato de trabalho suspenso. O empregador não pode, além disso, utilizar este direito de tomar a iniciativa de ruptura do contrato de trabalho para atender finalidades espúrias, contrárias ao direito, como seria exemplo a despedida de algum trabalhador por razões discriminatórias. Eventualmente, normas coletivas, como acordos ou convenções coletivas, ou sentenças normativas, proferidas em dissídios coletivos de trabalho, podem estabelecer alguma restrição a este direito ou regulamentá-lo de forma um pouco distinta daquela prevista de forma geral na legislação. Como exemplo, poderíamos citar o aumento do prazo do aviso prévio.

Na ausência de normas coletivas aplicáveis à categoria, e enquanto não for editada a lei complementar prevista no artigo 7º, inciso I, da Constituição Federal, a proteção à despedida arbitrária ou sem justa causa fica limitada à chamada multa do FGTS, exatamente como está estabelecido no artigo 10 das Disposições Transitórias do texto constitucional.

Não desconheço que algumas vozes na doutrina e algumas decisões judiciais se inclinam a, simultaneamente, expandir tal proteção e a limitar o exercício do direito do empregador de romper o contrato de trabalho, notadamente quando esse direito alcança considerável contingente de trabalhadores.

A linha básica de argumentação dos defensores de tal raciocínio envolve a idéia de função social da propriedade e a aplicação da teoria do abuso do direito.

No caso presente, contudo, não vejo qualquer espaço para aplicação de tais idéias.

Em primeiro lugar porque é público e notório que a denunciada atravessa uma gravíssima crise econômico-financeira, tendo estado, inclusive, sob a ameaça de fechar as portas. Houve a substituição de seus gestores em cumprimento a decisão judicial, há execuções milionárias em curso na Justiça Federal em favor da Fazenda Pública, bloqueio de recursos determinado judicialmente, leilão judicial de bens, ainda recentes atrasos nos pagamentos de salários, enfim, um quadro nada auspicioso diuturnamente noticiado na imprensa gaúcha. Num tal contexto, compreende-se perfeitamente a resistência de pais em matricular seus filhos na universidade da denunciada, o que, naturalmente, se reflete na redução do número de matrículas e na consequente diminuição do campo de trabalho do corpo docente. À denunciada restaria despedir professores ou diminuir o seu número de horas-aula. Nenhuma gestão minimamente responsável sob o ponto de vista econômico-financeiro poderia ignorar esta realidade e continuar suportando uma folha de pagamento com ela incompatível, o que somente agravaria a já delicadíssima situação da denunciada e, possivelmente, a levaria rapidamente à bancarrota final, privando então da fonte de subsistência todo o atual quadro de funcionários e professores.

O segundo aspecto digno de referência aqui: é igualmente público e notório que a legislação da educação tem exigido das entidades de ensino a contratação de um determinando contingente de professores em regime de tempo integral. Ora, mesmo que não houvesse ocorrido redução do número de matrículas, apenas a adequação a esta exigência já implicaria, possivelmente, na necessidade de desligamento de professores. Afinal, o aumento da carga horária, ou seja, das horas-aula de alguns dar-se-á com a redução da carga horária de outros. A equação é aritmética. E, tendo havido redução do número de matrículas, aí mesmo é que a adaptação à legislação educacional necessariamente resultará em desligamentos de professores.

O terceiro aspecto que afasta a idéia de que a denunciada estaria abusando do direito de despedir é, precisamente, o momento em que se dá o desligamento dos professores, ou seja, no início do semestre letivo, momento em que a denunciada, já então conhecedora da real necessidade de pessoal após a conclusão do período de matrículas, poderá então redefinir a dimensão do corpo docente. Nada muito diferente do que ocorreria se o número de matrículas estivesse crescendo: possivelmente apenas depois de dimensionar sua necessidade de pessoal é que contrataria professores, se houvesse demanda para tanto. A circunstância de a despedida de 56 professores no mês de agosto haver ocorrido após a realização de reuniões pedagógicas e de planejamento acadêmico somente demonstra que, estando em vigor o contrato de trabalho, ele é respeitado pela denunciada, que não deixa de exigir dos empregados o correto cumprimento de suas obrigações, possivelmente na esperança de que continuará a necessitar de seus serviços, esperança esta que poderá ser eventualmente contrariada pela conclusão do período de matrículas, quando constatada a não-desejada redução do número de alunos.

É preciso também anotar o comportamento contraditório da entidade sindical denunciante, que simultaneamente acusa a denunciada de promover despedidas que reputa ilegais e com ela firma acordo coletivo de trabalho prevendo o pagamento parcelado das verbas devidas aos professores despedidos em março. Se o sindicato considera que a atitude da denunciada é ilegal, dispõe de meios legais para discutir judicialmente o desligamento dos professores. É seu papel fazer isto (Constituição Federal, artigo 8º, inciso III), se, evidentemente, estiver convicta de seus fundamentos. Ao pactuar a forma de pagamento da rescisão dos professores, avaliza a despedida feita.

Finalmente, não é possível deixar de registrar a inconsistência da alegação de que a despedida causaria danos pela circunstância de ocorrer no início do semestre letivo. Supondo-se que a denunciada não pudesse despedir no início do semestre letivo, haveria de despedir quando? Como a alegação do sindicato é a de que o dano resultaria da impossibilidade de recolocação no mercado de trabalho, a denunciada também não poderia despedir durante o semestre letivo. E tampouco poderia fazê-lo no final, pois isto impediria a fruição das férias. E chegamos novamente ao início do período letivo.

O fato é que toda e qualquer despedida de trabalhador, de qualquer profissão, impõe desgaste pessoal àquele que perde o emprego. O emprego é, habitualmente, a fonte de sobrevivência do trabalhador. Mas o ato de despedir, por si só, somente gera o dever de indenizar na exata proporção prevista na legislação do trabalho, ressalvadas situações muito excepcionais, como a da despedida com caráter discriminatório, anteriormente referida.

Além da ausência de indícios de cometimento de ato ilegal por parte da denunciada nos fatos narrados na denúncia, a pretensão de que seja instaurado inquérito civil também esbarra no fato de que, se prejuízo se configurar ao empregado despedido, este será de caráter patrimonial e individual, cuja defesa não compete, constitucionalmente, ao Ministério Público do Trabalho.

O Ministério Público tem a missão de defender direitos ou interesses difusos, coletivos e, excepcionalmente, individuais (quando indisponíveis), nos termos dos artigos 127 e 129, inciso III, da Constituição Federal.

Pelas razões já expostas, não consigo enquadrar o comportamento da denunciada objeto da presente denúncia em ato causador de prejuízos a tais categorias de direitos. Se o ato em si de despedir violasse valores consagrados na Constituição e por ela protegidos, ele simplesmente não seria permitido pela Constituição. Mas é a própria Constituição que permite aos empregadores despedir sem justa causa. Logo, se o constituinte originário não considera que a despedida sem justa causa viola a dignidade humana, o valor social do trabalho, e valores constitucionais outros, e expressamente a permite, esvazia-se integralmente de consistência a linha de argumentação da entidade sindical.

O caminho para obter proteção contra a despedida sem justa causa passa pela negociação coletiva, pela luta sindical. Cabe ao sindicato e a todos os professores integrantes da categoria lutar para que seja instituída proteção em norma coletiva contra despedidas como as aqui noticiadas. Ou para que seja editada a lei complementar referida no já citado artigo 7º, inciso I, do texto constitucional.

O Ministério Público do Trabalho não pode ser utilizado como instrumento para a obtenção de vantagens que, por distintas razões, a categoria não logra obter.

Assim, seja por não existir ilegalidade no ato imputado à denunciada, seja porque, em tese, se ilegalidade houver não se dá em prejuízo de direitos ou interesses cuja defesa compita ao Ministério Público do Trabalho, promovo o liminar encerramento do presente expediente, indeferindo a instauração de inquérito.

Ciência à entidade sindical denunciante e à denunciada, o primeiro com o alerta de que poderá recorrer à Câmara de Coordenação e Revisão – CCR do Ministério Público do Trabalho em 10 dias, em petição escrita a ser protocolada nesta Procuradoria.

Publique-se esta decisão tanto na Internet quanto no mural próprio desta Procuradoria.

Decorrido o prazo recursal sem interposição de recurso, arquive-se.

Em 20 de outubro de 2010.





Ivo Eugênio Marques
Procurador do Trabalho

PROMOÇÃO DE INDEFERIMENTO DE INSTAURAÇÃO DE INQUÉRITO CIVIL - REP 001054.2010.04.000/8

PROMOÇÃO DE INDEFERIMENTO
DE INSTAURAÇÃO DE INQUÉRITO CIVIL



Trata o presente de expediente instaurado a partir do recebimento, pela colega Procuradora do Trabalho Dulce Martini Torzecki, de cópia do auto de infração 019974183, lavrado pela fiscalização do trabalho em 15/07/2010 contra a empresa Posto de Molas Salvador Ltda, por não apresentar documentos à fiscalização do trabalho referentes à obrigação de que trata o artigo 429 da CLT.

A empresa apresentou relação nominal de seus empregados, com indicação da função e respectivo código na CBO – CLASSIFICAÇÃO BRASILEIRA DE OCUPAÇÕES. Apresentou documentos relativos à recente contratação de um aprendiz.

Referidos documentos revelam que a empresa encontra-se regular quanto ao cumprimento da chamada cota de aprendizagem, pois dos 37 empregados que possui, 9 formam a chamada base de cálculo da mesma.

Lembremo-nos de que o caput do artigo 429 da CLT estabelece que “Os estabelecimentos de qualquer natureza são obrigados a empregar e matricular nos cursos dos Serviços Nacionais de Aprendizagem número de aprendizes equivalente a 5% (cinco por cento), no mínimo, e 15% (quinze por cento), no máximo, dos trabalhadores existentes em cada estabelecimento, cujas funções demandem formação profissional.”

A disposição legal aqui transcrita define claramente que a faixa percentual de 5% (mínimo) a 15% (máximo) incidirá apenas e unicamente sobre o número de vagas ocupadas por empregados cujas funções demandam formação profissional.

A tarefa de definir quais funções demandariam formação profissional sempre foi muito suscetível à subjetividade tanto da fiscalização do trabalho, quanto das próprias empresas, ora pretendendo elastecer, ora diminuir o conjunto das funções sobre a qual seria calculada a faixa percentual mencionada. A definição sobre o conjunto dessas funções, mais conhecida como base de cálculo da cota de aprendizagem, persiste sendo a maior dificuldade enfrentada em relação ao tema.

É preciso recordarmos que o instituto da aprendizagem se constitui, sob a ótica da educação, em mecanismo crucial, ao lado do estágio, para a formação profissional especialmente dos jovens. Mas, por outro lado, não pode servir à precarização do mercado de trabalho, mediante a utilização do instituto para mera obtenção de mão-de-obra barata, muitas vezes em detrimento da abertura de vagas de emprego que asseguram, aos trabalhadores, toda a proteção legal típica desta figura.

É válida, aqui, a lição de Oris de Oliveira, um dos que mais escreveu sobre aprendizagem no Brasil, de que: “(...) somente os ofícios passíveis de se submeterem a uma formação metódica mais prolongada podem ser objeto de um contrato de aprendizagem (...)”. Citando-o, diz Tárcio José Vidotti, Juiz do Trabalho no TRT da 15ª Região: “Ficam afastadas, assim, quaisquer tentativas de aprendizagem em profissões que não demandem qualificação técnico-profissional, como office boy, estafetas, empacotadores, serventes, cortadores de cana-de-açúcar, colhedores de algodão etc” (Introdução à Formação Técnico-Profissional – Teoria geral. Contrato de aprendizagem. Estágio curricular. São Paulo: LTr, 2004. P. 184).

Essas colocações são fundamentais para a compreensão do tema, pois atualmente há uma linha sendo adotada pela fiscalização do trabalho que não apenas é incompatível com os parâmetros legais a respeito da aprendizagem, como também com a própria finalidade desta.

Explica-se.

De acordo com o já citado artigo 429 da CLT, a base de cálculo da cota de aprendizagem é formada pelo conjunto das funções existentes em cada estabelecimento que demandam formação profissional. Se a função demanda formação profissional, como tal entendida aquela “formação metódica mais prolongada”, nas palavras de Oris de Oliveira, então ela integrará a base de cálculo. Se não demandar formação metódica mais prolongada, ou seja, se não demandar a formação profissional suscetível de aprendizagem, então não comporá a base de cálculo, e também não poderá ser objeto de cursos de aprendizagem. Daí a afirmação de Tárcio José Vidotti, antes transcrita, de que “Ficam afastadas, assim, quaisquer tentativas de aprendizagem em profissões que não demandem qualificação técnico-profissional, como office boy, estafetas, empacotadores, serventes, cortadores de cana-de-açúcar, colhedores de algodão etc”.

O Decreto 5.598/2005, que regulamenta a contratação de aprendizes prevista na CLT, oferece alguns critérios para a definição de quais funções demandam a formação profissional e, por isso, estão sujeitas à aprendizagem.

No seu artigo 10, caput, estipula o decreto que, para a definição das funções que demandem formação profissional, deverá ser considerada a Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), elaborada pelo Ministério do Trabalho e Emprego. Além disso, o decreto, no mesmo artigo 10, estabelece que ficam excluídas da base de cálculo as funções que demandem para o seu exercício habilitação profissional de nível técnico ou superior ou, ainda, as funções que estejam caracterizadas como cargos de direção, de gerência ou de confiança, nos termos do inciso II e do parágrafo único do artigo 62 e do § 2º do artigo 224 da CLT.

O problema surge em razão da interpretação que tem sido majoritariamente adotada pela fiscalização do trabalho na utilização da CBO, ao menos na capital do Rio Grande do Sul.

Quando examinamos a CBO, vimos que ela é inconsistente em vários momentos, pois em muitas funções o documento simultaneamente afirma que a função é aprendida na prática, no próprio emprego, mas que integra a base de cálculo, ou seja, que a função demandaria formação profissional para o seu exercício. Por mais simples que sejam as funções, a CBO aponta que demandam formação profissional, mesmo quando a própria CBO, na sua fundamentação, indica precisamente o contrário. Como exemplos, podemos citar desde porteiros e cobradores, até cortadores de cana e office boys, passando por sacristães e operadores de telemarketing.

A opção pela parte da CBO que afirma que a função integra a base de cálculo, mesmo quando a própria CBO sugere o oposto daquilo que afirma, é inconstitucional e ilegal.

Inconstitucional porque desconsidera a essência da aprendizagem, permitindo a utilização do instituto para precarizar ainda mais o mercado de trabalho, ao fomentar a colocação de jovens a trabalhar como aprendizes em circunstâncias estranhas à “formação metódica mais prolongada” que deve orientar o instituto; é igualmente inconstitucional ao impor aos empregadores uma obrigação distinta daquela instituída na lei, pois, em termos práticos, tal interpretação virtualmente transforma a totalidade das funções existentes no mercado de trabalho em funções que demandam formação profissional e que, por isso, integram a base de cálculo da aprendizagem e, assim, a obrigação de contratar no mínimo 5% de aprendizes, consideradas as funções que demandam formação profissional, passa a ser a de contratar no mínimo 5% de todas as funções existentes, indistintamente. Cria-se obrigação sem lei, o que viola a garantia constitucional do artigo 5º, inciso II, da Constituição da República. Tal interpretação é ilegal porque desconsidera que o artigo 429 da CLT, ao prescrever que a base de cálculo da cota de aprendizagem será constituída das funções que demandam formação profissional, reconhece que há funções que não demandam formação profissional, algo que a CBO virtualmente desconhece, pois, como já assinalado, tal documento, elaborado pelo MTE, estipula que praticamente todas as funções integram a base de cálculo, mesmo quando a própria CBO reconhece que a função é aprendida na prática, independentemente de qualquer treinamento teórico.

Por isso é que a CBO deve ser “considerada”, tal como o estipula o Decreto 5.598/2005. A expressão “considerada” significa que ela deve ser consultada e interpretada, e compreendida com cuidado e ponderação.

Neste ponto, é extremamente útil o artigo “Os Parâmetros Para a Fixação da Cota Legal de Aprendizes”, de autoria da Auditora Fiscal do Trabalho Roseniura Santos, da SRTE/SE.1

Transcrevemos a seguir a parte do artigo que nos interessa particularmente, inclusive com as corretas conclusões da autora:



A Classificação Brasileira de Ocupações (CBO)

A CBO foi elaborada com base na estrutura do modelo da Classificação Internacional Uniforme de Ocupações (CIUO), de 1988, da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Como definido pelo Ministério do Trabalho e Emprego, a Classificação é o documento uniformizador do reconhecimento, da nomeação e da codificação dos títulos e conteúdos das ocupações do mercado de trabalho brasileiro. É ao mesmo tempo uma classificação enumerativa e descritiva. A CBO é,em suma, instrumento de unificação de informações e facilitador de levantamento, análise e divulgação de dados tanto para o setor publico quanto para o setor privado.

A classificação foi elaborada pelo Ministério do Trabalho e Emprego em colaboração com um vasto número especialistas e instituições renomadas para espelhar o mais fielmente possível o mercado nacional. Ilustrativamente vejamos o grupo n. 7170 (ajudantes de obras civis / servente) cuja elaboração requereu a participação de 19 especialistas e ABC Demolições e Sucatas Ltda, Construtora Moreira Ortense Ltda, Cooperativa Prestadora de Serviços Multidisciplinares no Estado de Goiás (Mundcoop), Eletroenge Engenharia e Construções Ltda; Later Engenharia Ltda, Poligonal Construtora e Incorporadora Ltda, Prumus Construtora e Empreendimentos Ltda, Secretaria Municipal de Obras de Goiânia , Companhia de Obras e Habitação do Município de Goiânia (Dermu-Compav), Sousa Andrade Construtora e Incorporadora Ltda e o SENAI como instituição ancora.

Este grande número com pequenas variações se repetem nos outros milhares de grupos de ocupações. A pluralidade de sujeitos dá à CBO uma riqueza singular quanto à qualidade das informações. Por outro lado, a unificação da redação de diversos textos derivados de sujeitos distintos conduz a justificáveis inconsistências redacionais como se constata na análise de algumas hipóteses adiante analisadas.

Registre-se que perceber tal aspecto não desmerece a qualidade e o significativo avanço da nova classificação. No entanto, a constatação deste fato autoriza sim inferir que a CBO deve ser considerada como meramente indicativa e que exige também um processo de análise para aplicar as normas legais pertinentes à aprendizagem.

Outro ponto que deve ser ressaltado é a amplitude da extensão da codificação. A estrutura da CBO é hierárquico-piramidal e constituída de códigos e títulos, sendo composta de: (1) 10 grandes grupos (GG), (2) 47 sete subgrupos principais (SGP), (3) 192 subgrupos (SG) e 596 grupos de base ou famílias ocupacionais (SG) que agrupam 2.422 ocupações e cerca de 7.258 títulos sinônimos. Donde inquestionavelmente decorrem certas imprecisões.

A definição das funções que demandam formação profissional passa a passo

A CBO carece de contínua avaliação e estudo para venha a espelhar o mais fielmente a realidade do mercado de trabalho brasileiro:

Considerar a complexidade da estrutura da CBO e suas naturais inconsistências redacionais é essencial para a aplicação razoável das disposições legais. Ignorá-las é incorrer em grave desvio interpretativo com prejuízos ao sistema jurídico e seus fins.

De tudo exposto, verifica-se que o decreto regulamentador buscou fixar padrão objetivo para definir as funções, estabelecendo a observância da Classificação Brasileira de Ocupações como critério.

Faz-se necessário adotar uma metodologia de análise para fixação das funções integrantes da base de cálculo. Propõe-se que seja seguido o seguinte procedimento:

1º passo: Familiarizar-se com a CBO.

O Ministério do Trabalho e Emprego disponibiliza a versão no sitio http://www.mtecbo.gov.br. No link "informações gerais" apresentam-se as orientações básicas para entender e manusear a CBO.

No link "busca no site" pode-se pesquisar por código de ocupação ou pelas denominações dos cargos. Encontrado o resultado da pesquisa passa-se a análise dos dados.

2º passo: Verificar o conjunto de atividades da família de ocupações em que se enquadra a função analisada.

Feita a pesquisa e identificada a família de ocupações, passa-se a pesquisar no link "áreas de atividades" em que são descritas o conjunto de atividades ou funções inerentes à família respectiva. Tais informações lançadas na CBO, frise-se, são referentes aos grupos ou famílias de ocupações genericamente consideradas. Confira-se caso da família ocupacional dos operadores de telefonia (CBO n. 4222) que é constituída por:

4222 : Operadores de telefonia

4222-05 - Telefonista - Operador de centro telefônico , Operador de mesa telefônica , Operador de PABX , Telefonista bilíngüe

4222-10 - Teleoperador - Operador bilíngüe (telefonia) , Operador internacional (telefonia)

4222-15 - Monitor de teleatendimento - Monitor de apoio ao teleatendimento , Telefonista-líder , Telefonista-monitor

4222-20 - Operador de rádio-chamada - Operador de rádio , Operador de radiotelefonia , Radioperador

Para este grupo, no link "áreas de atividades", temos as seguintes áreas que possuem cada delas um conjunto de atividades minuciosamente descritas na CBO:

Áreas:

A - ATENDER O CLIENTE

B - PRESTAR SERVIÇOS

C - FORNECER INFORMAÇÕES

D - OPERAR EQUIPAMENTOS

E - CADASTRAR INFORMAÇÕES

F - TREINAR FUNCIONÁRIOS

G - MONITORAR ATENDIMENTOS

H - ELABORAR ESCALAS DE TRABALHO

Y - COMUNICAR-SE

Ao consultar a CBO on line pode-se clicar em cada um das áreas para obter relatório das respectivas atividades. Nesta etapa, deve-se examinar quais das atividades relacionadas são de fato desempenhadas na empresa.

A constatação de que a maior parte das atividades elencadas na CBO possui certo grau de complexidade e ainda que corresponde à prática da empresa é um forte indicativo de que uma função exige formação profissional metódica, mas não é fator capaz de por si só implicar em inclusão na base de cálculo.

3º passo: Analisar especialmente o item da CBO referente à formação e experiência (Condições gerais de trabalho).

Neste passo, cumpre estudar os dados referentes à formação profissional exigida pelo mercado segundo a descrição da CBO.

Observe-se que ocupações guardam entre si similitudes, porém são evidentemente distintas no que tange ao conteúdo das funções exercidas na prática de cada uma delas. Ocorre que a descrição quanto a formação e experiência é feita para FAMÍLIA DE OCUPAÇÕES e não para cada uma das ocupações:

4222: Operadores de telefonia

Formação e experiência

Essas ocupações são exercidas por trabalhadores com escolaridade de nível médio, exceto a Telefonista para a qual é requerido, no mínimo, o ensino fundamental. A formação profissional ocorre com a prática de um a dois anos, no local de trabalho.

Pela descrição acima, poder-se-ia deduzir que não há exigência de formação profissional metódica para esta família. Entretanto como sustentar tal conclusão no caso do operador bilíngüe ou operador internacional para quais certamente não basta escolaridade de nível médio ou fundamental. Nem a formação profissional se dá exclusivamente prática no local de trabalho. Ao contrario há um notório grau de maior de complexidade.

Vejamos ainda os dados constantes na CBO quanto às funções de servente de obras de construção civil e pedreiro:

7170 / Ajudantes de obras civis (servente de pedreiro

Formação e experiência: Para o exercício dessas ocupações requer-se escolaridade que varia entre a quarta e sétima séries do ensino fundamental e curso de formação profissional básica com até duzentas horas-aula. O exercício pleno das atividades ocorre após menos de um ano de experiência profissional.

7152 / Trabalhadores de estrutura de alvenaria (Pedreiro)

Formação e experiência: O grau de escolaridade exigido para atuar como profissional dessa área é o ensino fundamental. O aprendizado, geralmente, ocorre no canteiro de obras ou ainda pode ser obtido em escolas de formação profissional da área de construção civil. Para o pleno desenvolvimento das atividades requer-se experiência entre um e dois anos. O grau de escolaridade exigido para atuar como profissional dessa área é o ensino fundamental. O aprendizado, geralmente, ocorre no canteiro de obras ou ainda pode ser obtido em escolas de formação profissional da área de construção civil. Para o pleno desenvolvimento das atividades requer-se experiência entre um e dois anos

Como já constatado, a amplitude da classificação realizada envolvendo diversas atividades ocupacionais, não guarda rigoroso padrão de descrição quanto ao tópico "formação e experiência".

Os trechos sublinhados revelam, v.g., um conflito entre a descrição do ajudante de pedreiro em que se afirma ser exigido curso de formação profissional básica com até duzentas horas enquanto que o pedreiro, ocupação notoriamente mais complexa, não apresenta idêntica menção, referindo-se somente a aprendizado, no canteiro de obras ou em escolas de formação profissional da área de construção civil sem referência carga horária.

Este exemplo é emblemático e corroborar a conclusão de que deve-se analisar a CBO com cautela e que não é questão simples definir as funções que exigem formação profissional metódica mesmo com suporte na CBO.

Como visto não há uma absoluta uniformidade de linguagem, constata-se que há três formas básicas de redação do campo "formação e experiência":

a) a CBO não faz indicação de exigência de curso formação (assim como no caso do operador de telefonia).

b) a CBO menciona exigência de curso formação sem referir a uma carga horária necessária (por exemplo, no caso do pedreiro).

c) indica-se que há exigência de curso formação com referência de carga horária necessária (v.g., no caso do servente de pedreiro).

Diante desta constatação, urge investigar parâmetros para interpretação e aplicação da CBO.

É indispensável distinguir as três situações citadas.

a) A não indicação de exigência de curso formação:

Nesta hipótese, a informação de que a formação se baseia na experiência prática apenas é forte indício no sentido de excluir do cômputo da cota de aprendizes. No entanto é preciso cautela, não devendo ser automaticamente excluída, cabendo pesquisar o grau de complexidade das atividades.

A exemplo do caso da telefonista bilíngüe, deve-se verificar se uma ou mais das ocupações de fato exigem, contrariamente, formação de maior complexidade.

Os princípios jurídicos norteadores a serem considerados são o da primazia da realidade e da razoabilidade.

A lei n. 9784/1999 fixa normas básicas sobre o processo administrativo no âmbito da Administração Federal direta e indireta, visando, em especial, à proteção dos direitos dos administrados e ao melhor cumprimento dos fins da Administração. Aplicando-se toda atuação de agentes públicos fora da esfera judicial quer do Executivo ou do Ministério Público.

A referida lei estabelece no parágrafo único do art. 2º:

Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de:

I - atuação conforme a lei e o Direito;

XIII - interpretação da norma administrativa da forma que melhor garanta o atendimento do fim público a que se dirige, vedada aplicação retroativa de nova interpretação.

Certamente, a interpretação diversa tendente a incluir de modo generalizado de toda e qualquer função não se coaduna com o atendimento do interesse público porque não interessa ao Estado cometer injustiças e ilegalidades, impondo ao empregador obrigação excessivamente onerosa em descompasso com as finalidades do instituto da aprendizagem profissional.

b) A referência a exigência de curso formação sem referir a carga horária.

Todas as observações feitas na hipótese anterior são válidas também na situação acima.

c) Menção a exigência de curso formação com referência de carga horária necessária (no caso do servente de pedreiro).

Neste caso, propõe-se como diretriz que seja observado como número de carga horária mínima para incluir dada ocupação na base de cálculo a referência do CBO a carga horária mínima de 200 horas. Vejamos os porquês.

Na legislação trabalhista brasileira, não há muitas normas relativas à formação ou qualificação profissional. Uma das raras disposições encontra-se no caput do art. 476-A da CLT de modo especifico sobre o tema ao preceitua:

Art. 476-A. O contrato de trabalho poderá ser suspenso, por um período de dois a cinco meses, para participação do empregado em curso ou programa de qualificação profissional oferecido pelo empregador, com duração equivalente à suspensão contratual, mediante previsão em convenção ou acordo coletivo de trabalho e aquiescência formal do empregado, observado o disposto no art. 471 desta Consolidação.

A norma transcrita traz em si a consideração de que para qualificar um trabalhador adulto são necessários 2 a 5 meses no mínimo, sendo perceptível que o tempo é variante fundamental na identificação das funções cuja formação seja metódica e progressivamente desenvolvida na proporção da complexidade da formação exigida pela ocupação.

Propõem-se como indicativos de que a função demanda formação profissional metódica: o período mínimo de duração do curso seja de 2 meses o que equivale a uma carga horária mínima de 220 horas. Obtém-se esta dedução:

a) aplicando-se analogicamente o preceito do art. 476-A da CLT que se refere a 2 meses como período mínim necessário a uma formação ou qualificação profissional de um adulto;

b) considerando que a jornada de um aprendiz deve ter compatibilidade com as atividades escolares, implicando, em geral, uma jornada equivalente a metade da jornada normal de um trabalhador adulto de 220 horas mensais, ou seja, 110 horas mensais, totalizando, em 2 meses, 220 horas;

Esta dedução se baseia também na prática encontrada pelas órgãos integrantes dos sistemas nacionais de aprendizagem comercial e industrial (SENAC e SENAI) cujos cursos tem tido duração que variam de 6 a 24 meses.

4º passo: Cálculo da cota legal de aprendizes a serem contratados.

Nesta fase final, deve elaborar dois quadros: um geral em que constem todos os cargos e um segundo em que sejam identificados os cargos cujas funções exijam formação profissional metódica.

Por fim, totalizado o número de trabalhadores, calcula-se o percentual de 5%, tendo-se assim a cota de aprendizes legalmente exigida.

6. CONCLUSÃO.

O objetivo do contrato de aprendizagem é assegurar uma formação profissional moderna e adequada às necessidades do mundo do trabalho, tendo amplo potencial para ser fator de desenvolvimento do país. Tem fundamento constitucional na função social da propriedade com benefícios sociais e econômicos.

A Constituição vigente assegura o direito à profissionalização e estabelece também como finalidade da educação o pleno desenvolvimento da pessoa e sua qualificação para o trabalho.

A identificação das funções que devem integrar a base de cálculo da cota legal de aprendizes não tem sido tarefa fácil. A CBO é parâmetro geral de identificação. Entretanto a pluralidade de sujeitos elaboradores da classificação e sua ampla extensão de codificação conduzem a indefinições naturais e inevitáveis.

Por isso a CBO deve ser considerada como meramente indicativa. Devendo-se adotar um procedimento que sustente em parâmetros seguros, sendo indicativos fortes de que a ocupação demanda formação profissional metódica:

a) certo grau de complexidade da ocupação examinada;

b) necessidade de um programa metódico e progressivo de formação;

c) formação profissional obrigatoriamente constituído de atividade teóricas e práticas;

d) adequação da formação profissional ao mercado de trabalho;

e) duração mínima do programa de formação de dois meses ou carga horária equivalente a 220 horas.

Finalmente, enfatize-se que os princípios da primazia da realidade são balizadores de todo processo de análise da CBO. Ao aplicar as normas legais pertinentes, cabe notar as peculiaridades de cada caso, não se constituindo em verdades absolutas os parâmetros apresentados.



Essas conclusões se afiguram inteiramente procedentes. A CBO é instrumento valioso, a ser utilizado com respeito à natureza do instituto da aprendizagem e aos limites impostos tanto constitucionalmente quanto pela própria CLT, notadamente no que diz respeito ao conceito de formação metódica profissional como aquela “formação metódica mais prolongada”, que de fato beneficia o aprendiz com chances reais de colocação no mercado de trabalho a partir da obtenção de conhecimentos de um verdadeiro ofício ou profissão. De outro modo, a aprendizagem poderá ser utilizada simplesmente para propiciar ao empregador mal intencionado a utilização de mão-de-obra barata, e sem qualquer benefício para o aprendiz, que ao final do curso de aprendizagem será portador de qualificação para funções que, na prática, nada ou pouco exigem. Voltamos aos exemplos dos cobradores, balconistas, cortadores de cada, operadores de telemarketing, office boys, que, por não demandarem formação profissional, não podem nem integrar a base de cálculo, nem sujeitar-se a cursos de aprendizagem.

Fomentar, ou mesmo permitir a interpretação que vem sendo dada ao tema de forma aparentemente majoritária no âmbito do MTE (no RS ao menos) ainda significaria deixar de ampliar os horizontes e chances de progressão dos jovens que viessem a ser submetidos não a uma aprendizagem séria, mas a verdadeiro simulacro que os manteria presos, especialmente aqueles menos favorecidos, a quase inexistentes possibilidades de ascensão social.

No caso da empresa representada, temos que somente integram a base de cálculo, considerando-se a relação de folha 19, as seguintes funções: 9144-05 (mecânico de manutenção), 9193-10 (mecânico), 7711-05 (marceneiro), 7252-05 (mecânico montador), e 9111-20 (mecânico). As demais funções ou são de confiança, ou exigem não mais do que duzentas horas de qualificação, ou exigem qualificação específica, não atingível pela aprendizagem (caso do mecânico de manutenção de aeronaves, em geral, código 9141-05, ou do auxiliar de faturamento, código 4131-15, que exige preferencialmente curso técnico ou superior incompleto, como consta da CBO, ou ainda do motorista de caminhão, código 7825-10, função cujo exercício somente pode ser alcançada com atendimento de legislação específica).

Logo, o total de empregados que compõe a base de cálculo da cota é de 9. Assim, a contratação de um aprendiz atende ao artigo 429 da CLT.

Assim, promovo o liminar encerramento do presente expediente, indeferindo a instauração de inquérito.

Ciência à empresa representada e à SRTE/RS, com cópia.

Publique-se esta decisão tanto na Internet quanto no mural próprio desta Procuradoria.

Após, ao arquivo.

Em 18 de outubro de 2010.



 
Ivo Eugênio Marques
Procurador do Trabalho