segunda-feira, 25 de outubro de 2010

PROMOÇÃO DE INDEFERIMENTO DE INSTAURAÇÃO DE INQUÉRITO CIVIL - REP 001204.2010.04.000/0

PROMOÇÃO DE ARQUIVAMENTO -

INDEFERIMENTO

DE INSTAURAÇÃO DE INQUÉRITO CIVIL



Trata o presente de expediente instaurado por força da denúncia formulada pelo Sindicato dos Professores do Estado do Rio Grande do Sul – SINPRO/RS que, em resumo, imputa à denunciada a prática de “despedir um número significativo de professores no início de cada semestre letivo inviabilizando completamente sua recolocação no mercado de trabalho”. Segundo o sindicato denunciante, o despedimento dos professores pela denunciada “representa violação de direito a ser reparado pelo empregador”, pois “cria um problema social grave, porque sendo ela a principal empregadora do setor educacional privado conhece a situação do mercado” e “rebaixa a situação do professor a tão-somente uma peça que pode ser descartada, não levando em consideração que a realidade, tanto da profissão, quanto do mercado, exigem certos cuidados na observância do contrato de trabalho”. Afirma ainda que a conduta da denunciada causa dano moral coletivo e requer “seja promovido Inquérito Civil, com posterior ajuizamento de ação civil pública” (folhas 03/06).

Determinei a intimação da empresa denunciada para se pronunciar, tendo ela, inicialmente, manifestado estranheza com a denúncia na medida em que o sindicato denunciante inclusive firmou com ela acordo coletivo envolvendo o pagamento das verbas devidas por ocasião da rescisão aos inúmeros professores despedidos em março do corrente ano. Alega que tal despedida decorreu de ajuste à Lei de Diretrizes e Bases, em atenção à notificação do MEC. Em relação aos despedidos em agosto, também do ano em curso, afirma que o desligamento decorreu da redução do número de alunos, que imagina vinculada à grave cris que assola a entidade, e que teria afetado a sua imagem. Sustenta, ainda, que os professores não são admitidos em regime de dedicação exclusiva e, por isso, podem trabalhar em outras instituições, o que muitos fazem. Aduz que que inexistem regras que regulamentem a data de rescisão de contrato de trabalho de professores e que, por isso, as instituições de ensino possuem livre arbítrio de contratar e despedir na época que lhes for mais conveniente. Diz também que a despedida não tem qualquer intuito de prejudicar os professores. Junta cópia do acordo coletivo de trabalho firmado com a entidade sindical denunciante.

Acolho o raciocínio exposta pela denunciada.

Em nosso sistema de direito do trabalho, a ruptura contratual, por iniciativa de qualquer das partes, é em regra livre. A qualquer tempo o empregado ou o empregador podem avisar a outra parte de que não há interesse na continuidade da relação e assim desvincular-se das obrigações do contrato de trabalho. Como os contratos de trabalho ordinariamente não têm prazo determinado, este aviso, chamado na lei de aviso prévio, faz com que o contrato passe a ter data para terminar, a qual corresponderá, como regra geral, ao término do período de 30 dias contado de tal aviso. O empregador somente não pode despedir empregados que detenham alguma forma de estabilidade ou garantia de emprego, ou aqueles que estejam afastados de suas atividades, com o contrato de trabalho suspenso. O empregador não pode, além disso, utilizar este direito de tomar a iniciativa de ruptura do contrato de trabalho para atender finalidades espúrias, contrárias ao direito, como seria exemplo a despedida de algum trabalhador por razões discriminatórias. Eventualmente, normas coletivas, como acordos ou convenções coletivas, ou sentenças normativas, proferidas em dissídios coletivos de trabalho, podem estabelecer alguma restrição a este direito ou regulamentá-lo de forma um pouco distinta daquela prevista de forma geral na legislação. Como exemplo, poderíamos citar o aumento do prazo do aviso prévio.

Na ausência de normas coletivas aplicáveis à categoria, e enquanto não for editada a lei complementar prevista no artigo 7º, inciso I, da Constituição Federal, a proteção à despedida arbitrária ou sem justa causa fica limitada à chamada multa do FGTS, exatamente como está estabelecido no artigo 10 das Disposições Transitórias do texto constitucional.

Não desconheço que algumas vozes na doutrina e algumas decisões judiciais se inclinam a, simultaneamente, expandir tal proteção e a limitar o exercício do direito do empregador de romper o contrato de trabalho, notadamente quando esse direito alcança considerável contingente de trabalhadores.

A linha básica de argumentação dos defensores de tal raciocínio envolve a idéia de função social da propriedade e a aplicação da teoria do abuso do direito.

No caso presente, contudo, não vejo qualquer espaço para aplicação de tais idéias.

Em primeiro lugar porque é público e notório que a denunciada atravessa uma gravíssima crise econômico-financeira, tendo estado, inclusive, sob a ameaça de fechar as portas. Houve a substituição de seus gestores em cumprimento a decisão judicial, há execuções milionárias em curso na Justiça Federal em favor da Fazenda Pública, bloqueio de recursos determinado judicialmente, leilão judicial de bens, ainda recentes atrasos nos pagamentos de salários, enfim, um quadro nada auspicioso diuturnamente noticiado na imprensa gaúcha. Num tal contexto, compreende-se perfeitamente a resistência de pais em matricular seus filhos na universidade da denunciada, o que, naturalmente, se reflete na redução do número de matrículas e na consequente diminuição do campo de trabalho do corpo docente. À denunciada restaria despedir professores ou diminuir o seu número de horas-aula. Nenhuma gestão minimamente responsável sob o ponto de vista econômico-financeiro poderia ignorar esta realidade e continuar suportando uma folha de pagamento com ela incompatível, o que somente agravaria a já delicadíssima situação da denunciada e, possivelmente, a levaria rapidamente à bancarrota final, privando então da fonte de subsistência todo o atual quadro de funcionários e professores.

O segundo aspecto digno de referência aqui: é igualmente público e notório que a legislação da educação tem exigido das entidades de ensino a contratação de um determinando contingente de professores em regime de tempo integral. Ora, mesmo que não houvesse ocorrido redução do número de matrículas, apenas a adequação a esta exigência já implicaria, possivelmente, na necessidade de desligamento de professores. Afinal, o aumento da carga horária, ou seja, das horas-aula de alguns dar-se-á com a redução da carga horária de outros. A equação é aritmética. E, tendo havido redução do número de matrículas, aí mesmo é que a adaptação à legislação educacional necessariamente resultará em desligamentos de professores.

O terceiro aspecto que afasta a idéia de que a denunciada estaria abusando do direito de despedir é, precisamente, o momento em que se dá o desligamento dos professores, ou seja, no início do semestre letivo, momento em que a denunciada, já então conhecedora da real necessidade de pessoal após a conclusão do período de matrículas, poderá então redefinir a dimensão do corpo docente. Nada muito diferente do que ocorreria se o número de matrículas estivesse crescendo: possivelmente apenas depois de dimensionar sua necessidade de pessoal é que contrataria professores, se houvesse demanda para tanto. A circunstância de a despedida de 56 professores no mês de agosto haver ocorrido após a realização de reuniões pedagógicas e de planejamento acadêmico somente demonstra que, estando em vigor o contrato de trabalho, ele é respeitado pela denunciada, que não deixa de exigir dos empregados o correto cumprimento de suas obrigações, possivelmente na esperança de que continuará a necessitar de seus serviços, esperança esta que poderá ser eventualmente contrariada pela conclusão do período de matrículas, quando constatada a não-desejada redução do número de alunos.

É preciso também anotar o comportamento contraditório da entidade sindical denunciante, que simultaneamente acusa a denunciada de promover despedidas que reputa ilegais e com ela firma acordo coletivo de trabalho prevendo o pagamento parcelado das verbas devidas aos professores despedidos em março. Se o sindicato considera que a atitude da denunciada é ilegal, dispõe de meios legais para discutir judicialmente o desligamento dos professores. É seu papel fazer isto (Constituição Federal, artigo 8º, inciso III), se, evidentemente, estiver convicta de seus fundamentos. Ao pactuar a forma de pagamento da rescisão dos professores, avaliza a despedida feita.

Finalmente, não é possível deixar de registrar a inconsistência da alegação de que a despedida causaria danos pela circunstância de ocorrer no início do semestre letivo. Supondo-se que a denunciada não pudesse despedir no início do semestre letivo, haveria de despedir quando? Como a alegação do sindicato é a de que o dano resultaria da impossibilidade de recolocação no mercado de trabalho, a denunciada também não poderia despedir durante o semestre letivo. E tampouco poderia fazê-lo no final, pois isto impediria a fruição das férias. E chegamos novamente ao início do período letivo.

O fato é que toda e qualquer despedida de trabalhador, de qualquer profissão, impõe desgaste pessoal àquele que perde o emprego. O emprego é, habitualmente, a fonte de sobrevivência do trabalhador. Mas o ato de despedir, por si só, somente gera o dever de indenizar na exata proporção prevista na legislação do trabalho, ressalvadas situações muito excepcionais, como a da despedida com caráter discriminatório, anteriormente referida.

Além da ausência de indícios de cometimento de ato ilegal por parte da denunciada nos fatos narrados na denúncia, a pretensão de que seja instaurado inquérito civil também esbarra no fato de que, se prejuízo se configurar ao empregado despedido, este será de caráter patrimonial e individual, cuja defesa não compete, constitucionalmente, ao Ministério Público do Trabalho.

O Ministério Público tem a missão de defender direitos ou interesses difusos, coletivos e, excepcionalmente, individuais (quando indisponíveis), nos termos dos artigos 127 e 129, inciso III, da Constituição Federal.

Pelas razões já expostas, não consigo enquadrar o comportamento da denunciada objeto da presente denúncia em ato causador de prejuízos a tais categorias de direitos. Se o ato em si de despedir violasse valores consagrados na Constituição e por ela protegidos, ele simplesmente não seria permitido pela Constituição. Mas é a própria Constituição que permite aos empregadores despedir sem justa causa. Logo, se o constituinte originário não considera que a despedida sem justa causa viola a dignidade humana, o valor social do trabalho, e valores constitucionais outros, e expressamente a permite, esvazia-se integralmente de consistência a linha de argumentação da entidade sindical.

O caminho para obter proteção contra a despedida sem justa causa passa pela negociação coletiva, pela luta sindical. Cabe ao sindicato e a todos os professores integrantes da categoria lutar para que seja instituída proteção em norma coletiva contra despedidas como as aqui noticiadas. Ou para que seja editada a lei complementar referida no já citado artigo 7º, inciso I, do texto constitucional.

O Ministério Público do Trabalho não pode ser utilizado como instrumento para a obtenção de vantagens que, por distintas razões, a categoria não logra obter.

Assim, seja por não existir ilegalidade no ato imputado à denunciada, seja porque, em tese, se ilegalidade houver não se dá em prejuízo de direitos ou interesses cuja defesa compita ao Ministério Público do Trabalho, promovo o liminar encerramento do presente expediente, indeferindo a instauração de inquérito.

Ciência à entidade sindical denunciante e à denunciada, o primeiro com o alerta de que poderá recorrer à Câmara de Coordenação e Revisão – CCR do Ministério Público do Trabalho em 10 dias, em petição escrita a ser protocolada nesta Procuradoria.

Publique-se esta decisão tanto na Internet quanto no mural próprio desta Procuradoria.

Decorrido o prazo recursal sem interposição de recurso, arquive-se.

Em 20 de outubro de 2010.





Ivo Eugênio Marques
Procurador do Trabalho